A
dívida é um anátema; a dívida é uma maldição, fortemente
ligada a um peso moral que implica invariavelmente vários processos
de culpabilização. A dívida é aquilo que separa credores e
devedores, mas são os devedores aqueles que são sujeitos a
processos de culpabilização, reféns de sociedades moralizadoras,
neste particular, e paradoxalmente, despidas de valores em tantos
outros aspectos consideravelmente mais importantes.
A
Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida (IAC) há anos que
tem disponibilizado um documento que contém 10 perguntas frequentes
sobre a dívida. A nona pergunta é a seguinte: A dívida deve ser
"paga a todo o custo"? A resposta é indissociável da
ética e deste modo se faz a separação entre dívida como relação
social básica e abrangente, que implica uma responsabilidade do
devedor porque "por regra, este empréstimo não envolve lucro"
e dívida no sentido financeiro sendo esta dívida definida como "um
negócio: o credor empresta na expectativa de obter lucro. Mas como o
resultado é incerto, cobra juros, que remuneram, além do tempo, o
risco envolvido. Neste sentido, a responsabilidade de uma dívida é
também do próprio credor e não apenas do devedor".
Paralelamente, acrescenta-se: "as dívidas que envolvem agentes
financeiros, são pela sua natureza abstracta e
descontextualizada, transferíveis. Ao contrário, uma dívida em
sentido social é intransmissível, isto é, o dever de reciprocidade
a alguém que se obriga para retribuir um valor em dívida, não pode
ser transferido para um qualquer outro credor".
Na
verdade assiste-se a uma confusão entre estes dois conceitos
diferentes e coloca-se a questão das dívidas financeiras no plano
moral, reforçando a obrigação de pagar a todo o custo e
viabilizando políticas destrutivas que de outro modo nunca seriam
aceites.
Transfere-se
a culpa da dívida apenas para o devedor, ficando ausente do debate e
da consciência colectiva as responsabilidades do credor.
A
resposta à pergunta colocada pelo IAC (Iniciativa para uma Auditoria
Cidadã) é obviamente negativa. Para além dos argumentos aludidos,
acrescenta-se: "Relativamente à dívida pública, mesmo
admitindo que o Estado português seja um devedor "honrado"
e único responsável, ainda assim deve perguntar-se por que razão o
imperativo do pagamento aos credores deve ser considerado moralmente
superior a outros compromissos igualmente assumidos pelo Estado
(saúde, justiça, educação)? Manter a expectativa de elevados
lucros dos agentes financeiros é o único compromisso que o Estado
decide honrar. Porquê? A dívida não deve ser paga a todo o custo.
"O custo deve ser repartido por todos os responsáveis,
incluindo os credores. Neste contexto, repartir responsabilidades
significa algo normal e que sempre se praticou: renegociar uma
dívida".
Importa
olhar para a dívida pública a partir deste prisma. Infelizmente,
não é assim. Boa parte dos partidos políticos, comentadores,
jornalistas e outros que se dedicam a "fazer opinião"
insistem no carácter moral da dívida - uma abordagem que amiúde
não fica longe do crime (dívida) e castigo (pagamento dessa dívida
a todo o custo). E é deste modo que conceitos como democracia,
justiça, Estado Social, Projecto Europeu estão a perder força, dia
após dia.
Dívida
é escravatura, é negócio, é incrivelmente rentável e está a
subjugar as sociedades. Enquanto continuarmos a ver a questão da
dívida financeira apenas sob o prisma moral, deixando toda a linha
argumentativa refém da culpabilização não nos livraremos deste
anátema que nos condena à mais inexorável insignificância.
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